Clichês da Psicanálise
2 encontro – “A mulher não existe”
Abertura: Cristina Duba
Boa noite, hoje é nosso segundo encontro na série Os clichês da psicanálise, na qual buscaremos elucidar alguns dos principais clichês da psicanálise, como dissemos no primeiro encontro do ano, “Freud explica?”. Dessa maneira, nosso esforço será o de extrair do que se banalizou como clichê seus fundamentos psicanalíticos, sua doutrina, seu ensino, em suma, o aforismo que este mesmo clichê abriga.
Hoje, recebemos nossas prezadas colegas, membros da EBP e AMP, e associadas do ICP, Maria do Rosário Collier do Rego Barros e Maria Sílvia Hanna, para tratar do clichê “A mulher não existe”, que é um dos clichês mais espinhosos da psicanálise. Ele se soma, faz série no senso comum com os mal-entendidos em torno da inveja do pênis, e mesmo da primazia do falo, e tantos mais que têm a aparência de reduzir a mulher e a feminilidade a uma espécie de antessala do falo ou imperfeição, interrupção, falha, do masculino. Nossas colegas nos trarão seu trabalho de elucidar esse mal-entendido e apontar suas contradições e desdobramentos e assim resgatar das controvérsias fundamentais em torno do tema o que está em jogo para nós, psicanalistas de orientação lacaniana, nessa afirmação, “a mulher não existe”.
Passo a palavra a Rosário. A seguir, M Sílvia nos trará seu comentário.
Debatedora: Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna
A mulher não existe.
- Agradeço a Cristina Duba pela oportunidade de estar aqui com vocês reunidos para realizar uma elucidação de um dos clichês lacanianos. A palavra clichê provem das artes gráficas e define um texto ou uma imagem impressa por um processo especial (estereotipia ou fotogravura). Então o trabalho proposto é conectar essa imagem impressa que diz A mulher não existe com o contexto de elaboração.
- Rosário nos apresentou um trabalho muito interessante e esclarecedor que permite entender o que está em jogo nessa afirmação produzida por J. Lacan nos anos 70. Como vimos várias perguntas foram formuladas por Freud – O que é uma mulher? O que ela quer? O que é um pai? que permitiram delimitar no campo da sexualidade aquilo que era tido como o mistério do feminino. Mulheres são perigosas, mulheres são malignas, bruxas, loucas, temidas, etc.
- Lembro que Freud não encontra no psiquismo nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou de fêmea. Portanto, não há um significante que diga do ser do macho ou da fêmea. Nessa abordagem a sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que denominamos de falta. O mito do édipo, sua estrutura articulada à castração é a forma como Freud elabora a identificação sexual e a escolha de objeto. Toda essa elaboração destaca um gozo, o gozo fálico.
- Assim, para S. Freud a menina (falo) percorre um caminho que pode desembocar em sua transformação em uma mulher.
- Não se nasce mulher, torna-se. Antiga discussão entre Freud e Jones retomada pelos analistas que os sucederam. A frase também está presente nas elaborações da feminista Simone de Beauvoir e que foi emblema do feminismo na primeira metade do século XX.
- É somente por volta dos anos 70 que Lacan aborda o gozo retomando o mito do pai da horda primitiva, deixando demonstrado que o gozo não é absoluto, é fragmentado. Essa elaboração abrirá a possibilidade de ir além do falo, além do gozo fálico: dando entrada a um Outro gozo.
- A mulher não existe. Como assim? Parece um contrassenso! Tem tantas mulheres no mundo! Essa afirmação: a mulher não existe, só pode ser demonstrada logicamente através das fórmulas da sexuação, tal como Rosário apresentou. Do lado homem, temos o todo, do lado mulher temos o não todo. O não todo que afeta seu gozo impede que ela seja A mulher. Portanto a mulher é barrada. Quer dizer não toda inserida na castração. Lembremos que a castração introduz a dimensão da falta via o falo. Essa situação de ser não toda sujeita a lógica fálica lhe dá a condição de acessar um outro gozo, além do falo. Esse gozo sem limites nas mulheres é conectado por Lacan com algo da loucura feminina. Isso as faz um pouco loucas, um pouco excessivas, um pouco perdidas. Isto pode assustar.
- Então para Lacan dizer a mulher não existe, faz com que o tornar-se mulher seja uma escolha forçada de uma particularidade. Que particularidade é essa? É a relação com o modo pelo qual o gozo afeta o corpo feminino sem que nenhum órgão especifico venha a responder a isso.
- O orgasmo clitoriano não é equivalente ao gozo do pênis. O orgasmo clitoriano se des-completa ao chamar ao orgasmo vaginal. Portanto o orgasmo fica des-localizado afetando o corpo. Não há uma representação unívoca. Algo perturba o corpo e isso afeta a posição feminina, e é o fato de não haver representação e localização típica de seu gozo.
- No gozo masculino temos a parada com a detumescência. No gozo feminino se dá de forma descontinua, aos saltos. Há um a mais….
- Tirésias responde à pergunta: Quem tira maior prazer na relação sexual? Dizendo: Das 10 partes do prazer o homem tira apenas uma, saber que tinha adquirido ao ser transformado em mulher como um castigo que durou 7 anos. As mulheres sabem disso, é que algo as sacode, mas não falam sobre isso diz Lacan. Elas só o sentem.
- Pergunta à Rosário: Podemos continuar a falar à luz das fórmulas da sexuação: Tornar-se uma mulher — Seria esta uma construção, um sinthoma, uma invenção que caberia a cada uma? Por isso dizemos que as mulheres se contam uma a uma? E os homens também podem ter acesso a esse gozo. Diga um pouco mais sobre como podemos nos servir dessa elaboração para nos orientar na experiência psicanalítica.
- Por último, Rosário, você considera que a formulação de um gozo além do falo pode vir a enriquecer aos movimentos políticos que reivindicam outros lugares para as mulheres?
Fala final: Cristina Duba
Agradeço a Rosário e M. Silvia pelas suas falas tão preciosas e esclarecedoras e destaco como nos demonstraram como o clichê “A mulher não existe” nos levou a outro clichê, “Não existe a relação sexual”, do qual deriva afinal, numa redução extrema, o último ensino de Lacan, ao dar positividade à sexualidade feminina e ao que Freud chamou de seus enigmas. O que certamente permitiu à psicanálise se ressituar nos debates feministas.
Agradeço também aos colegas presentes e suas contribuições e convido para o próximo encontro.