SOBRE O CONSELHO DELIBERATIVO

O fundamental no ICP

Em uma recente discussão com os associados do ICP, Maria do Rosário C. do Rêgo Barros chamou a atenção para uma preciosa indicação de Jacques-Alain Miller[1]: a formação do analista tem a ver com a inconsistência do Outro. Ou seja, o que está no horizonte de uma análise também se apresenta em seu ensino.

Deparei-me com outra indicação de Miller nesse sentido. Ao se perguntar sobre o que Jacques Lacan ensinou, por que e como, Miller ressalta que não haveria uma resposta única de Lacan a cada uma dessas questões. Longe disso, existiriam várias e elas podem, inclusive, ser contraditórias. “Essa inconsistência[2] diz alguma coisa sobre Lacan, – ou melhor: ela reproduz algo do seu discurso.”

A inconsistência não impediu a transmissão de Lacan. Talvez ela tenha sido, aliás, condição, pois incorpora a lógica presente no inconsciente tal como descoberto por Sigmund Freud à transmissão da psicanálise[3]. Ou seja, no discurso mesmo de Lacan há a marca do que ele se propôs a transmitir. E o que seria essa inconsistência? Na matemática há lógica inconsistente, “não standard”, onde há lugar para as contradições sem que um dos elementos contraditórios precise anular o outro. Essa lógica se conecta diretamente à inconsciente, segundo a qual contrariedades e paradoxos podem coexistir e não precisam ser resolvidos numa ou outra direção. “O respeito que se deve ter por essa inconsistência supõe que se respeite o tempo gasto para que essa inconsistência venha realçar-se”[4]. Realçar a inconsistência, eis uma direção.

Com ela no horizonte, trago uma nuance de nosso trabalho no Conselho do ICP na ocasião da seleção para o Curso Fundamental. Ao nos debruçarmos nas demandas que chegaram, vimos que elas poderiam nos interpretar, recolocando a pergunta sobre o que é fundamental no ICP.

Podemos nos arriscar, desta vez, inspirados pelo traço da inconsistência ressaltado por Miller: a cada um/a que se aproxime do ICP nos caberia ouvir o que os trouxe, seu ponto de engajamento com a orientação lacaniana e, principalmente, com a experiência do inconsciente a partir da análise. Portanto, nos parece muito importante manter viva a pergunta sobre como oferecer vias de aproximação e participação no ICP, e que o Curso fundamental não precise ter uma centralidade, mas que seja um lugar com uma transferência de trabalho que suporte a lógica da inconsistência.

Cada um/a comporá seu trajeto de participação no ICP de forma singular, contando com seu desejo e com a incidência de outros a partir de suas transferências. Ou seja, o Curso fundamental seria uma das possibilidades. Fundamental é, antes, que o ICP seja um lugar que suporte para associadas e associados, alunas e alunos e participantes dos Núcleos de pesquisa a inconsistência do Outro na formação. Nesta empreitada, não há conceitos sólidos e finalizados. A cada um de nós cabe reabrir o caminho pelo qual a psicanálise foi inaugurada e seus conceitos, construídos para dar conta de uma experiência de palavra, e não de uma ciência do psíquico[5].

Um traço que marca o ICP é que alguns de seus Núcleos de pesquisa o precederam, marcando a origem e a vocação do Instituto como lugar de pesquisa antes mesmo de sua fundação e de passar a oferecer cursos[6]. Os cursos seguem uma roupagem mais estruturada, podemos dizer, mas não deixam de ser frutos dessa mesma vocação de pesquisa que desembocou na criação do ICP. Como a pesquisa em psicanálise está em sintonia com o fato de os conceitos permanecerem em movimento, o ensino do ICP não poderá encontrar uma totalidade, mas visa “alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”[7].

O analista se forma no divã, o ICP pode vir a formar um caminho de endereçamento para a Escola[8], onde as ressonâncias da pergunta sobre a função da psicanálise hoje tomam seu lugar. Para pavimentar esse caminho a cada um/a, contamos com o trabalho decidido da diretoria no sentido de sustentar dispositivos diversos de participação: o Curso fundamental, o Primeiras lições, Conferências, Cursos livres, Núcleos e Unidades de pesquisa.

“Há tempos são os jovens que adoecem”, cantava Renato Russo. Nossa aposta é a de que o ICP não seja, para a juventude que habita cada um de nós – cronologicamente ou não – mais um lugar de adoecimento ao suportar um Outro consistente que delimitaria à parte da enunciação de alguém o caminho a ser seguido. Que ele seja um lugar em que “o acaso estende os braços”[9] para acolher cada um em sua escolha pela psicanálise.

Tatiane Grova Prado
Secretária do Conselho do ICP-RJ

 


[1]  Miller, J.-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 63.
[2]  Miller, J.-A. “O ensino de Lacan”. Em: Clique – Rev. dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano, n. 1. Belo Horizonte, 2002, p. 17, grifo nosso.
[3]  “Mas é impossível analisar e interpretar sem haver relação com a inconsistência”. Miller, 2011, p. 62.
[4]  Idem.
[5]  Alberti, C. apud Castro, H. “Constelações e singularidade”. Trabalho apresentado no EBCF, 2018.
[6]  Do Rêgo Barros, R. et. al. “Por que um instituto de pesquisa? O que ensinamos?”. Em: Arquivos da Biblioteca, n. 15. EBP-Rio: 2019, p. 96-97.
[7]  Lacan, J. (1953) “Função e Campo da fala e da linguagem”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 322.
[8]  Idem, p. 100.
[9]Há tempos, Legião Urbana.
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